A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NAS MÚSICAS AMAPAENSES

De acordo com Mainguenau em sua “Análise de textos de Comunicação” (2002), quem interpreta um enunciado reconstroi seu sentido podendo este ser ou não o que o enunciador tenta passar. A compreensão do enunciado independe do uso de materiais de apoio como dicionários ou gramáticas, mas da leitura de mundo do receptor, valendo dúvidas, hipóteses ou um raciocínio lógico sobre o mesmo.
Orlandi em “Terra à vista” (1990) ao falar sobre a análise de discurso, enfatiza que:

“A análise de discurso (...) visa construir um método de compreensão dos objetos de linguagem. Para isso, não trabalha com a linguagem enquanto dado, mas como fato (...) ela acaba por inaugurar uma nova percepção do político, pela sobrevivência com a materialidade da linguagem, materialidade esta ao mesmo tempo linguística e histórica.” (p. 25)

Com base neste texto que introduz-se essa análise, buscando sempre comprovar a identidade amapaense através de trechos de músicas regionais.
Ao longo dos anos vemos a evolução da construção da identidade do povo amapaense. Isto se reflete nas músicas regionais, que contém cada vez mais esse apelo ao reconhecimento e resgate às origens. Mas, antes de adentrar ao assunto, deve-se conceituar primeiro o que vem a ser identidade. Além dela, também é necessário saber o que é diferença e identificação que também estão atreladas ao assunto em questão.
Orlandi (1990) diz que: “a identidade é um movimento, tanto no seu modo de funcionamento (entre o eu e o outro) como em sua historicidade (devir, mas também multiplicidade na contemporaneidade etc.)” (p. 46). Ser amapaense implicitamente se afirma não ser paraense, paulista ou fluminense. Ser amapaense é não morar no sul, sudeste, nordeste ou centro-oeste. É estar na região norte, porém ainda assim ter suas particularidades, como afirma Alberto Góes , ao falar acerca da identidade cultural amapaense: “este estado possui extraordinária riqueza natural, histórica, artística, arqueológica, gastronômica e regional. E por ter perfil próprio quer ter a sua identidade reconhecida”.
Esse perfil do qual a fala de Alberto Góes se remete vai ser tratado em alguns trechos de músicas amapaenses abaixo. Em “Sentinela Nortente”, de Amadeu Cavalcante, vê-se a tentativa de construção da identidade, começando pela localização, que, de acordo com o sujeito, é esquecido pelo resto do país:

“O sol brilha forte no horizonte
No fim do Brasil
E clareia nossa condição
Nossa miscigenação”

O sujeito já no começo identifica que a música do Amapá, pois são colocadas características típicas daqui, limitando pouco a pouco a localização. O sol forte é comum no norte e nordeste,mas o que se encontra no fim do Brasil não podem ser todos os estados das duas regiões. Também não pode ser o Rio Grande do Sul porque este estado não tem característica de sol forte, mas de baixa temperatura por se encontrar na região Sul.
Além disso, o receptor que conhece a localização dos dois estados citados sabe que o Amapá se encontra no topo do Brasil e não no fim como a música sugere. É num sentido de esquecimento do Estado por parte do povo brasileiro que a palavra é escolhida para assumir a indignação quanto ao descaso com que a terra é tratada.
Outra evidência é a palavra miscigenação, característica do povo nortista - em sua maioria, tem a cor parda pela mistura do negro e do índio – e no Estado o tom bronzeado pelo sol forte e o clima quente.
A tentativa de uma construção da identidade amapaense pode ser vista na música de Zé Miguel a seguir, que também retrata a localização. Observa-se a construção de uma referência geográfica e cultural baseada na descrição do cotidiano e da linguagem corrente nesta região:


“É fácil o meu endereço
Vai lá quando o sol se por
Na esquina do rio mais belo
Com a Linha do Equador”

Macapá é a única capital banhada pelo rio Amazonas – maior rio do mundo – e cortada pela Linha do Equador. Neste trecho o sujeito visa construir uma localização com os pontos turísticos mais fortes do lugar para (ao mesmo tempo que situa de forma diferente o estado), mostrar suas belezas naturais esquecidas pelas pessoas.
As marcas do sujeito estão explícitas neste trecho. O uso do pronome possessivo “meu”, o adjetivo – de uma visão particular – dado ao rio são exemplos de um nortista que quer ser reconhecido dessa forma na sua cidade.
O próximo trecho é da música “Vida boa”, ambém de Zé Miguel:

“A vida daqui é assim devagar
Precisa mais nada não pra trabaiá
Basta o céu, o sol, o rio e o ar
E um pirão de açaí com tamuatá”

O sujeito enfatiza a tradição do povo ribeirinho que ainda existe em grande número nos interiores do estado, ao contrário das cidades grandes que não apresentam cidades interioranas como as do Amapá. Os três primeiros versos mostram que tudo que eles precisam pra sobreviver está e pode ser retirado da natureza.
A vida ribeirinha ainda se reflete nos costumes dos mais velhos que passaram a morar na cidade: comida (açaí com tamuatá), músicas e linguagem (trabaiá; pirão). Claude Lévi Strauss (apud. Silva, 2000.) enfatiza que:

“A cozinha estabele uma identidade e que é o meio universal pela qual a natureza é transformada em cultura. A cozinha também é uma linguagem por meio da qual “falamos” sobre nós próprios e sobre nossos lugares no mundo (...). Aquilo que comemos pode nos dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura na qual vivemos (...) (p.42) (...). O consumo de alimentos tem também uma conexão material: as pessoas só podem comer aquilo que elas podem comprar ou que está disponível em uma sociedade particular.” (p.43)

Diante disso, nota-se que a culinária amapaense (no caso, açaí com tamuatá) é utilizada na formação do contexto enunciativo, ou seja, através da gastronomia e costumes se caracteriza o sujeito em questão. Este sujeito utiliza, como dito acima, de alimentos retirados diretamente da natureza para consumo diário por ter um rio que lhe proporciona o peixe e a floresta que lhe dá o açaí, comprovando a existência da identidade culinária amapaense.
Até aqui já se tem uma noção de diferença. Sabe-se que ela a identidade não existe, ou seja, a identidade é dependente das relações de diferença. Silva (2000), diz que “a diferença é concebida como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é (...)” (p.74). Assim, quando o sujeito enuncia que “a vida daqui é assim devagar” está diferenciando o interior do Estado através do advérbio de lugar (daqui) dos demais lugares, ou seja, o sujeito levanta uma fronteira simbólica entre o típico homem ribeirinho e aqueles que vivem em outro contexto social ou urbano.
Segundo Silva (2000), a construção das identidades e as diferenças aparecem mais comumente sob a forma de oposições binárias utilizadas para estabelecer as diferenças entre as culturas. Neste caso, a identidade de uma região ou de um indivíduo se constrói por meio da análise entre este e o “outro”, ou seja, a ideia de identidade é obtida com as auteridades.
No entanto, as oposições binárias podem ser basedas na exclusão, na diversidade, na heterogeneidade e no hibridismo. No caso das músicas amapaenses observa-se que essa oposição, mesmo que de forma implícita, manifesta-se para estabelecer diferenças e construir a identidade do povo. Por exemplo, na música “Jeito Tucuju”:

“Quem nunca viu o Amazonas
Nunca irá entender
A vida de um povo
De alma e cor brasileiras
Suas conquistas ribeiras
Seu dom milagroso
Não contará nossa história
Por não saber e por não fazer jus
Não curtirá nossas festas tucujus
Quem nunca viu o Amazonas
Nesse momento
E souber transbordar de tanto amor
Esse terá entendido
O jeito de ser do povo daqui”

O argumento construído nesta letra de música surge do dualismo entre o indivíduo que é amapaense e outro que não é. Ocorre então a valorização mais de um do que de outro, ou seja, a valorização do regional/tucuju que está no centro do sistema de significação da cultura, neste caso a amapaense, em relação ao outro que é visto como “o de fora”, “o forasteiro”. Novamente um advérbio de lugar particulariza o povo (daqui), que não é de lá.
Nota-se também uma dimensão psicanalítica dentro do discurso dessa música, onde a mesma tem a intenção de recrutar o ouvinte para que este ocupe a posição de sujeito neste contexto, seja de forma consciente ou inconsciente, o receptor é convidado a refletir diretamente sobre a sua própria identidade e indiretamente sobre a do outro.
O povo amapaense, ao ouvir as músicas regionais muitas vezes se identifica ora por palavras do vocabulário nortista, ora pelo contexto que evidencia através de localizações ou história da origem das mesmas. Silva (2000) elenca conceitos do que seria identificação. Segundo ele:

“Na linguagem do senso comum, a identificação é construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal (...)
Em contraste com o ‘naturalismo’ dessa definição, a abordagem discursiva vê a identificação como uma construção, como um processo nunca completado – como algo sempre ‘em processo’”. (p. 106)

Como se percebe, as identidades podem mudar ao longo do tempo conforme as transformações sociais, e com ela as características de um povo. Nota-se também que as músicas regionais amapaenses constituem uma grande carga de análise discursiva, pois apresentam características da identidade cultural do Estado, enfatizando os costumes, os hábitos, a história e a culinária.

Orientadora: Edna Oliveira (profª Msª de linguística na Universidade do Estado do Amapá-UEAP)
Acadêmicos: Bianca Vilhena; Jamilly Abraçado; Lorenna Braga; Maria do Socorro; Miriana da Costa; Paulo Rocha (acadêmicos do curso de Letras pela Universidade do Estado do Amapá-UEAP)


REFERÊNCIAS

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2002.
ORLANDI. Eni P. Terra à vista – discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez, 1990.
Revista Casa da Amapalidade. Setembro 2008. Edição Especial. Sebrae Amapá. P.6.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perpectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.