CINDERELA E OS ARQUÉTIPOS FEMININOS DA SOCIEDADE

“Mas sua posição (Perrault) em relação ao papel das mulheres era bastante ambígua pois, embora defendesse contra os ataques de Boileau, na Querela dos Antigos e Modernos, seus contos deixam escapar nas entrelinhas inúmeras manifestações antifeministas.”
(Mariza Mendes)

RESUMO
Este artigo trata dos arquétipos femininos no conto “Cinderela”, na versão do escritor francês Charles Perrault, nas personagens da fada, madrasta e Cinderela. Sabe-se que os contos continham muito da vida real. Logo, é de se esperar que as ideologias também fossem postas nas personagens mais evidentes afim de já ensinar as crianças aquilo dito como o certo pela classe dominante. Para fazer as análises tem-se apoio em estudiosos da literatura e da psicanálise, além de em alguns casos exemplares com cenas da vida real o que o conto, seja sincrônica ou diacronicamente, dá abertura.
Palavras-chave: arquétipos femininos; Cinderela; Charles Perrault.

RÉSUME
Cette article parle des modèles féminins dans le compte “Cendrillon”, dans la version du écrivain français Charles Perrault, dans les personages de la fée, de la belle-mère e de la Cendrillon. On sait que les comptes contenait beaucoup de la vie réel. C’est pour ça qui les idéologies aussi était mis dans les personages plus évidentes à la fin de enseigner les enfants tout que la classe dominante pensait comme éssentiel. Pour faire les analyses on a de base en studiéux de la littérature et de la psicanalyse, là-bas de quelques affaires pour exemplaires avec des scènes de la vie réel qui le compte nos donne ouverture.
Mots-clé; les modèles féminins; la Cendrillon; le Charles Perrault.

INTRODUÇÃO
Cinderela é uma das histórias – senão a mais – mais conhecidas do mundo. Alguns estudiosos afirmam ela ser originada no oriente por conta da busca pelo pé ideal para o sapatinho. Isto porque antigamente na China as mulheres chegavam a atrofiar seus enfachando-os, afim de conseguir diminuí-los o máximo possível para ser tornarem mais belas.
A história de Cinderela aqui tratada é baseada na versão de Perrault de 1697, num século que pré-iluminista onde as ideias e concepções novas começavam a aflorar até nas mulheres, antes tão reprimidas. Como exemplo, o escritor francês era frequentador dos salões literários onde as “preciosas” contavam muitas histórias em que as mulheres tinham grandes funções; fadas e protagonistas representavam o lado virtuoso das mulheres. E por haver uma preocupação com a mulher nos contos de Perrault é que este artigo enfatiza os arquétipos femininos.
Muito além dos arquétipos, análises são feitas para explicar o comportamento na vida real das crianças, mas aqui detêm-se no padrão exemplar das figuras femininas e também faz-se algumas referências do que é acontece na vida real. Por isso ele tem análises ora sincrônicas, ora diacrônicas, mas, claro, sempre apoiadas em grandes estudiosos da literatura e da psicanálise.

Charles Perrault: o escultor da imagem feminina
Charles Perrault nasceu em Paris, em 12 de janeiro de 1628. Estudou no Colégio de Beauvais, em Paris, e foi admitido como advogado em 1651. Abandonou a profissão, foi ajudante do irmão na Administração das Finanças Gerais, secretário da Academia das Inscrições e das Belas Letras, tornou-se Primeiro Comissário das Edificações.
Relançou em 1687 a “Querela entre Antigos e Modernos”, onde expunha ideias contrárias as vigentes na época, as quais defendiam a dominação pelo sentimento de superioridade dos autores da Antiguidade (gregos e latinos), e o ideal estético do classicismo. Ao passo que Boileau defendia os Antigos, Perrault defendia o Moderno, como se confirma nesses dois versos: “Então comparem, sem temerem ser injustos,/Cem anos sob Luís aos cem belos de Augusto!”.
Mas além de tudo já havia acontecido na vida de Perrault foi com a pequena obra “Histórias ou contos de outrora”, composta por oito contos maravilhosos, que Perrault adquiriu notoriedade na literatura universal. Uma das causas que o levou a perpetuar algumas histórias contadas na infância por suas amas de leite foi cuidar pessoalmente dos três filhos e da educação deles desde pequenos: em 1671 se casou, aos 44 anos com Marie Guichon, uma moça de 19 anos que faleceu seis anos depois.
É importante notar que, no final do século XVI educadores começaram a se preocupar com a leitura dada às crianças. Alguns livros foram proibidos, pois estes continham alguns conteúdos duvidosos. É certo que isso acontece primeiramente com a burguesia, pois ela tinha crianças alfabetizadas. Ariès (2006) comenta:
“Nasceu então a idéia de se fornecer às crianças edições expurgadas de clássicos. Essa foi uma etapa muito importante, é dessa época realmente que podemos datar o respeito pela infância. Essa preocupação surgiu na mesma época tanto entre católicos como entre protestantes, na França como na Inglaterra” (p. 83).
Por isso que os contos de Perrault são endereçados à burguesia, como diz Cademartori (2006): “O trabalho de Perrault é de um adaptador. Parte de um tema popular, trabalha sobre ele e acresce-o de detalhes que respondem ao gosto da classe à qual pretende endereçar seus contos: a burguesia” (p. 36).
Após o momento folclórico que não visava a infância, veio o de adaptação pedagógica que focava o público infantil. Tinha como objetivo passar valores e padrões a serem respeitados pela sociedade e também incorporados pela criança. Vemos agora a transformação desses contos, antes, da literatura popular, agora, da literatura infantil. A moral é prioridade na educação, sobre a qual Ariès (2006 ) faz nota:
“Formou-se assim essa concepção moral da infância que insistia em sua fraqueza mais do que naquilo que M. De Grenaille chamava de sua natureza ilustre, que associava sua fraqueza à sua inocência, verdadeiro reflexo da pureza divina, e que colocava a educação na primeira fileira da obrigações humanas” (p. 87).
Os contos escritos por Perrault eram contados por mulheres e tem um estilo simples, ingênuo, doce. Mas a ênfase dada a mulher em seus contos se deve não só a isso. Acontece que Perrault frequentava os salões literários onde mulheres se reuniam para contar histórias e falar de ideais feministas. Eram conhecidas como “preciosas”. Entretanto, a posição do escritor em seus contos é ambígua, “pois, embora fosse contra os ataques de Boileau, na Querela dos antigos e Modernos, seus contos deixam escapar nas entrelinhas inúmeras manifestações antifeministas” (Mendes, p.53).
De qualquer forma Perrault não esquecia de nenhuma forma a mulher. Sobre isto Mendes (2000) trata:
“Quando os contos não eram escritos pelas mulheres, eram a elas dedicados. Assim cada um dos três contos em verso, assinados pelo poeta, foi dedicado a uma dama da corte cujo nome não era mencionado. E a coletânea em prosa foi dedicada a uma sobrinha de Luís XIV. Esse fato pode não ser uma prova do ‘feminismo’ de Perrault, mas é um dos fatores que levam à conclusão de que foram as ‘preciosas’ as responsáveis pela publicação dos Contos da Mamãe Gansa entre os clássicos da Academia Francesa. Para elas, as fadas deveriam representar o poder feminino na sociedade”. (p. 53)
A versão de Cinderela escrita por Perrault em Os Contos da Mamãe Gansa data 1697 e está entre as primeiras elaborações literárias completas da história. Pode-se notar já no nome do conto (assim como Chapeuzinho Vermelho e A Bela Adormecida) indica que o personagem central é feminino (este será analisado mais à frente).

Então, o que é um arquétipo?
São vários os conceitos dados a arquétipo que se multiplicam ao longo do tempo, mas aqui vamos seguir aqueles que se referem aos contos de fadas.
Para Jung, na psicanálise, o inconsciente é um “vasto oceano” e o consciente uma “pequena ilha”. E é neste “vasto oceano” que estão as raízes das simbologias dos contos de fadas. Estas só são absorvidas até hoje porque estão no inconsciente coletivo, sobre o qual Régis Boyer define:
“Uma espécie de imenso reservatório espiritual, acessível a todos os possuidores de uma determinada civilização – em certa medida, a todo ser humano – onde recolhemos, de forma mais inconsciente do que consciente ou lúcida, os sonhos, os delírios, os mitos, as imagens literárias, os símbolos que alimentam toda religião e toda literatura.” (in Dicionário de mitos Literários, 1998. Apud Coelho, 2003 – p. 91-92)
Um exemplo de inconsciente coletivo é quando a criança nasce: ela já tem a capacidade de reconhecer a mãe e reagir a presença desta; isto porque os seres humanos sempre tiveram mãe, ou seja, é uma potencialidade herdada, fruto das experiências passadas da raça humana (Mendes, 2000. p. 35).
Dentro do reservatório espiritual definido por Régis estão os arquétipos dos contos de fadas. Sobre isto Jung afirma:
“Os contos de fadas, do mesmo modo que os sonhos, são representações de acontecimentos psíquicos. Mas enquanto os sonhos apresentam-se sobrecarregados de fatos de natureza pessoal, os contos de fadas encenam dramas da alma, com materiais pertencentes em comum a todos os homens. (...) Mitos e contos de fadas dão expressão a processos inconscientes e, ao escutá-los, permitimos que esses processos revivam e tornem-se atuantes, restabelecendo, assim, a conexão entre consciente e incosciente. (...) Os mitologemas (presentes nos contos de fadas) são a linguagem primordial desses processos psíquicos e nenhuma formulação consegue sequer aproximar-se da profundidade e da força de expressão das imagens míticas. Trata-se de imagens primordiais, cuja representaçao faz-se melhor e de forma mais sucinta ao se utilizar da linguagem figurada, a linguagem dos símbolos, a linguagem original do inconsciente e da humanidade” (apud. Coelho, 2003. p. 92)
Se os arquétipos femininos não são ouvidos numa conversa real, são nos contos que a criança absorve inconscientemente e se identifica com personagens que representam grandes forças ou impulsos da alma humana:
“O instinto de sobrevivência, o medo, o amor, o ódio, o ciúme, os desejos, o sentimento do dever, a ânsia da imortalidade, a vontade de domínio, a coragem ou heroísmo, o narcisismo, a covardia, a inveja, o egoísmo, a luxúria, a fé (necessidade de crer num Ser Superior ou num Absoluto), a funda ligação com a Mãe (o Feminino, a Anima), o respeito ou o temor ao Pai (o Masculino, o Animus), a rivalidade entre irmãos... Tais arquétipos, no âmbito da literatura ou da mitologia clássica, têm sido representados por figuras ou personagens arquetípicas, isto é, representações dessas paixões ou ‘gigantes da alma’ que se amalgamam no inconsciente coletivo analisado por Jung” (Coelho, 2003. p. 92-93)
Mendes (2000) considera o arquétipo na visão Junguiana e explica de forma mais condensada:
“Um arquétipo é uma forma de pensamento ou de comportamento, um símbolo das experiências humanas básicas, que são as mesmas para qualquer indivíduo, em qualquer época e qualquer lugar. Sendo resultado de uma experiência que foi repetida durante muitas e muitas gerações, os arquétipos estão carregados de uma forte emoção, que Jung chama de ‘energia’. Essa energia lhes dá o poder de interferir no comportamento do indivíduo e da coletividade. E nesse particular os arquétipos parecem funcionar como os ‘complexos’, mas ‘enquanto complexos individuais não produzem mais do singularidades pessoais, os arquétipos criam mitos, religiões e filosofias que influenciam e caracterizam nações e épocas inteiras’.” (p.35)
Percebe-se então o por quê de Cinderela ser até hoje a história mais conhecida no mundo: cerca de 3000 versões desta são contadas, inúmeras filmagens baseadas no conto revelam que muito se tem a falar através das personagens madrinha, madrasta, filhas más, e claro, Cinderela, a qual as mulheres mais se identificam em qualquer idade, absorvendo destas personagens arquetípicas arquétipos como: casamento, magia, figura da mãe, da madrasta, da madrinha, o medo, o desejo, o amor, a luxúria, a rivalidade entre irmãos, etc.

Cinderela: arquétipo da mulher ideal
Todas as versões de Cinderela remetem o nome da protagonista a cinzas. Assim, Cinderela é aquela que trabalha junto às cinzas. Mas este significado pode levar a vários entendimentos.
Num primeiro entendimento aludimos a cinza como resíduo do fogo. No passado havia um criado responsável por guardar o fogo e colher seus resíduos, estando ele na base de uma sociedade hierarquizada. Era uma situação totalmente degradante. Comprova-se esta situação com o seguinte recorte do conto:
“Encarregava-se dos serviços mais grosseiros da casa. (...) Depois que terminava seu trabalho, Cinderela se metia num canto junto à lareira e se sentava no meio das cinzas.” (Tatar, 2004.p.40)
Num segundo entendimento pode-se dizer que Cinderela passa do lixo ao luxo: antigamente algumas mulheres tinham a função de guardiãs do fogo do lar (as virgens vestais). Uma menina entre seis a dez anos era incumbida deste cargo honroso por cinco anos, até atingir a idade do casamento. Então, a idade e o período de sofrimento na casa com a madrasta e as irmãs equivale ao das virgens vestais.
Ao juntarmos os dois entendimentos (o primeiro de mais rápida apreensão que o segundo) temos uma personagem suja por fora e pura por dentro. Perrault a torna tão pura que Bettelheim ironiza: “a ‘Cinderela’ de Perrault é açucarada e de uma bondade insípida, e não tem nenhuma iniciativa”. (p.343)
O que Bettelheim coloca não foge à verdade. Cinderela é quem escolhe viver entre as cinzas, não toma iniciativa para dizer o que pensa, é tão retraída que nem consegue dizer o quanto quer ir a baile e ainda aceita as irmãs de braços abertos ao final do conto, apesar de as irmãs tratarem-na como escrava. É como um cachorro que apanha, mas mesmo assim continua amando a quem lhe bate. Assim, não é uma Gata, mas uma Cachorra Borralheira.
Corso (2006, p.110) defende a personagem de Perrault ser assim para seguir um roteiro que não se perde da essência:
“... a boa alma, companheira da beleza, encontra o devido reconhecimento apesar dos trapos que a ocultam. A jovem joga um esconde-esconde com um príncipe e com sua família, que se nega a ver nela algum valor. Ele investiga, a descobre, lhe declara seu amor e só então ela revela que é a bela dama do baile.”
Cinderela é uma personagem frágil e dependente, que não faz nada em relação aos maus-tratos das irmãs e da madrasta. Mas tudo isto apenas a engrandece: as atitudes más das três mulheres contrastam com as características de Cinderela dando ideia de que ela é uma mulher que está no topo de todas as virtudes. Até hoje o coportamento e o destino da personagem é o esperado pelas jovens e até sonhado por elas (Mendes, 2006-p. 45).
Sobre o comportamento de Cinderela, Mendes (2006) retrata:
“Em Cinderela permanecem vivos os ideais da sociedade patriarcal: a criança e a mulher devem ser submissas, o poder deve ser divino e masculino.” (p.45)
“Cinderela não reclama dos maus-tratos e dos serviços pesados que a madrasta e suas filhas lhe impõem, aceita ingenuamente as razões pelas quais ela não pode ir ao baile e, depois, concorda em retirar-se antes da meia-noite. O supra-sumo da bondade, porém, é perdoar as irmãs invejosas e levá-las para o palácio real. Perrault conseguiu nesse conto retratar, com os requintes da arte litarária, o modelo de comportamento feminino esperado pela sociedade machista: a mulher deve ser linda, dócil, obediente e infinitamente bondosa. São os índices que caracterizam a personagem e marcam sua função na narrativa” (p.130)
É importante dizer que Perrault dava preferência a esse cenário cortês onde o amor acontece porque frequentava os salões das “preciosas”, além, claro, de ser burguês. Cinderela, apesar de ser ingênua e submissa consegue mudar de classe ao conquistar o coração do príncipe. Entretanto, para que isso pudesse acontecer deveria dar valor também ao seu lado “sujo”. Ela espera pacientemente que algum poder mágico a salve da situação de penúria. Logo, ser vestida pela fada-madrinha com “trajes de brocado de ouro e prata incrustados de pedrarias” e “sapatinhos de vidro, os mais lindos do mundo” (Tatar, 2004-p.43), chama a atenção do príncipe, descrito com emoção e encantamento: “deu-lhe a mão quando ela desceu da carruagem e conduziu-a ao salão onde onde estavam os convidados” (ibidem).
A personagem principal representa o caminho a ser percorrido pela mulher – moça pobre que se torna princesa - no papel que a sociedade patriarcal lhe reservou: a realização por meio do casamento. Também o casamento é uma válvula de escape para que a vida tão sofrida da protagonista mude.

Madrasta: traços negativos da figura materna
O conto começa da seguinte forma:
“Era uma vez um fidalgo que se casou em segundas núpcias com a mulher mais soberba e mais orgulhosa que já se viu. Ela tinha duas filhas de temperamento igual ao seu, sem tirar nem pôr. O marido, por seu lado, tinha uma filha que era a doçura em pessoa e de uma bondade sem par. Nisso saíra à mãe, que tinha sido a melhor criatura do mundo.” (Tatar, 2004-p.39)
Vemos logo os arquétipos femininos serem formados e o papel do pai de Cinderela já feito: ele só está na história de Perrault para se casar novamente e dar uma madrasta para Cinderela afim de que aquela contenha todos os traços negativos da figura materna.
Percebe-se também que no começo do conto há uma definição das características como se fossem hereditárias: de um lado pura bondade (a mãe e Cinderela), do outro pura maldade (a madrasta e as meia-irmãs). Essa nítida diferenciação dá uma ideia de continuidade, como afirma Gonçalves (1998):
“Quem semeia o mau colhe tempestade”. Se a madrasta é má, suas filhas também são. E possivelmente serão madrastas também. E, neste ponto, eu abro uma parênteses para ir além da interpretação dos sentimentos negativos de Cinderela para com suas meia-irmãs: parece-me que o conto também nos fala de uma certa “lei social de continuidade”, onde os estigmas da bondade e da maldade parecem passar de pai para filho como genes hereditários. Assim como os estigmas da loucura, da luxúria, da criatividade, etc. Os filhos são identificados pelas ações e pensamentos de seus pais, avós, etc. Espera-se deles o mesmo comportamento que os reconheça na sociedade como “filhos de fulano” ou “netos de ciclano”, e isto pode provocar um sofrimento muito grande porque corre-se o risco de viver com uma identidade totalmente misturada e atrelada à dos outros.” (p.91)
Nelson Vitiello, ao apresentar o livro de Gonçalves (1998) dá ênfase ao nome “madrasta”.
“Ainda que o termo “madrasta” derive etimologicamente da mesma raiz que “mãe”, a sílaba inicial parece formar uma associação inconsciente com “má” e com “maldade”. Socialmente vistas assim, as madrastas tem lugar importante no fabulário de nossa cultura, sendo nesse sentido clássicas as madrastas das histórias de Cinderela e Branca de Neve, entre muitas outras.” (p.9-10)
Segundo Bettelheim (2007) nos contos de fadas, a madrasta existe para comportar todas as características más que a mãe possui e é por isso que a mãe morre logo e/ou outra pessoa a substitui para comportar as características boas (no caso, a fada). Já o historiador norte-americano Robert Darnton, citado por Mendes (2000, p.56), que escreveu O grande massacre dos gatos (1986) critica a psicanálise por fazer uma leitura diacrônica dos fatos. Logo, para Darnton, fazendo uma interpretação histórica e social, as madrastas existem nos contos porque na ápoca a morte no parto era frequente e os viúvos eram então obrigados a casar novamente para não cuidarem sozinhos de seus filhos, embora soubessem que eles seriam maltratados pelas madrastas.
Essa interpretação é relevante no conto porque o pai parece não ter voz ao se tratar da relação madrasta/enteada. Cinderela suporta tudo, pois “não ousava se queixar ao pai, que a teria repreendido porque era sua mulher que dava as ordens na casa.” (Tatar, 2004-p.39)
A madrasta poderia dar as ordens, mas quem cuidava era Cinderela. Mais uma vez vemos Cinderela apresentar os traços da “boa-mãe”, que, para a sociedade (principalmente a de Perrault) era/é aquela que cuida da casa. A madrasta não ocupa nenhum lugar na vida de Cinderela como “boa mãe”, seja no campo afetivo – “não tolerava as boas qualidades da enteada” (ibidem, p.39) - ou nos cuidados domésticos – “Encarregava-a (Cinderela) dos serviços mais grosseiros da casa.” (ibidem, p.39)
Gonçalves (1998) faz uma ligação com o papel de “boa mãe” antes muito desejado pelas mulheres e o que hoje elas almejam:
"Se em “Cinderela” a heroína passa da condição de criada para rainha, as mulheres também passaram por esta transformação: de donas de casa insatisfeitas para profissionais bem-sucedidas. Mas esta mudança também colocou as mulheres frente a uma ambivalência: por um lado elas desejam desvincular as tarefas domésticas do papel da “boa mãe”, por outro se cobram por não conseguirem cumpri-lo totalmente.
A Cinderela dos contos de fadas também é assim. Por um lado anseia o reconhecimento pelas tarefas que desempenha na casa, por outro quer tornar-se uma linda rainha que terá criados para desempenhar este papel". (p.98;99)
Apesar de toda maldade da madrasta, Cinderela acaba por perdoá-la e as meias-irmãs. Esta capacidade de perdoar acima de qualquer maldade comprova que Perrault definiu o uso ideológico nos contos de fada. Mendes (2000) afirma que “paciência e honestidade eram, para os nobres e burgueses do Antigo Regime, as virtudes máximas da mulher” (p.55). E ainda:
“Mas é evidente também que, quanto maior o encantamento provocado pela obra de arte, mais fácil é a transmissão da ideologia que deu origem. Por isso não podem ser ignorados os valores sociais dos contos de fada.” (p.45)

Fada: deusa, mãe, mestra
Já foi dito que a madrasta representa a parte má da mãe. Então a fada madrinha de Cinderela é a imagem arquetípica da mãe com seu lado bom. Ela tem o papel de vestir Cinderela lhe proporcionar a felicidade. A fada cumpre este papel no conto de Perrault porque a mãe só é citada no começo do conto. Bettelheim (2007) declara:
“Em Gata Borralheira”, nada nos é dito a respeito da mãe verdadeira, que é mencionada na maioria das histórias de ‘Cinderela’; e não é uma representação simbólica da mãe original que proporciona à filha maltratada os meios de encontrar seu príncipe, mas uma fada em forma de tamareira.” (p.335)
Nos grandes salões literários as “preciosas” acreditavam que as fadas representavam o poder feminino na sociedade. A fada madrinha de “Cinderela” também parece dirigir a vida da protagonista para um destino repleto de riqueza e felicidade, totalmente diferente de sua vida na casa da madrasta.
A fada parece ter três papeis na história: deusa, mãe e mestra. Deusa por ter poder (a crença das “preciosas”), mãe por cuidar de Cinderela e mestra por guiá-la no caminho certo.
Importante frisar o papel de mãe da fada. No diálogo que tem com Cinderela sobre a ida ao baile, ela enfatiza: “pois bem, se prometer ser uma boa menina eu a farei ir ao baile” (Tatar, 2004-p.42). Esta é uma fala corrente das mães como condição para a criança ser recompensada. Em nota Tatar acrescenta que os contos de fadas recompensam a virtude, e Perrault faz questão de frisar a delicadeza e doçura da protagonista, indicando isto que seu público alvo eram as crianças.
A madrinha de Cinderela aparece nos momentos em que ela necessita para ascender: quando quer ir ao baile (por tudo que a fada-madrinha faz, a protagonista consegue conhecer o príncipe e fazê-lo se apaixonar) e quando calça o sapatinho de vidro (para afirmar que Cinderela é a princesa do baile a fada lhe orna do belo vestido usado no baile). A aparição da fada em apenas doi momentos se deve ao fato de que:
“... as fadas existem para auxiliar os fracos e desprotegidos, mas estes devem cumprir seu destino, passando por todas as etapas do desenvolvimento psíquico, até chegar ao amadurecimento e à felicidade.” (ibidem, p.128)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por mais que Perrault participasse dos bailes e as histórias contadas pelas “preciosas” contribuíssem para os “Contos da Mamãe Gansa”, as ideologias antifeministas ainda são notáveis em algumas de suas personagens como Cinderela. Mas há de se concordar na importância imensurável dada ao sexo feminino em suas obras. É evidente em Cinderela o apagar do pai e a notoriedade dada a madrasta, meias-irmãs, fada e Cinderela.
Os papeis também são muito nítidos: a protagonista é perfeita, a fada é poderosa e capaz de mudar o destino da donzela e a madrasta má. Entretanto, sabe-se que, por mais que esta última seja a vilã dos contos de fadas tem um papel fundamental, pois se não houvesse o contraste não seria notório as qualidades das protagonistas.
Além disso as três personagens aqui analisadas não fazem apenas parte de uma história contada às crianças: elas podem muito dizer sobre os costumes da época, os estágios da criança e servem como base para se comparar o ideal feminino coletivo da época para a busca da realização individual atual.

 Orientadora: Tânia Ataíde (Profª Msª de Literatura na Universidade do Estado do Amapá-UEAP)
Acadêmica: Lorenna Braga (acadêmica de Letras, 6º semestre, na Universidade do Estado do Amapá - UEAP) lolo_luanda@hotmail.com


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2.ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 21.ed. Tradução: Arlene Caetano – São Paulo: Paz e Terra, 2007.
CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 2006.
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas: Símbolos, Mitos, Arquétipos. São
Paulo: DCL, 2003.
CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã: Psicanálise nas
Histórias Infantis.
GONÇALVES, Ana Cristina Canosa. Madrastas: do conto de fadas para a vida real. São Paulo: Iglu, 1998.
MENDES, Mariza B. T. Em busca dos contos perdidos: o significado das funções femininas nos contos de Perrault. São Paulo: UNESP, 2000.
TATAR, Maria. Contos de fadas: edição comentada e Ilustrada. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2004.